Farol de Mosqueiro

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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A Cabanagem em Mosqueiro

Apesar de alguns estudiosos atribuírem a eclosão do Movimento Cabano como decorrência da divisão das elites em torno da nomeação do presidente da Província do Pará, a historiografia é praticamente unanime em afirmar que o movimento foi um levante genuinamente popular contra as lastimáveis condições de vida a que eram submetidas amplas parcelas da Província. Provavelmente, a maior e mais sangrenta revolta social ocorrida no Brasil. Em artigo publicado nos Anais do Arquivo Público do Pará, Magda Rici faz a seguinte referência ao movimento:

“Entre 1835 e 1836, vários grupos rebeldes, conhecidos como ‘cabanos’ tomaram o poder na cidade de Belém do Pará, a mais importante cidade da Amazônia brasileira. Este movimento – A Cabanagem – obteve grande popularidade entre a comunidade pobre do Pará. Assim, tem sido alvo de muitos estudos desde 1835, e sua interpretação sempre tem sido alterada.”


Os Cabanos eram constituídos por camadas sociais desfavorecidas como os caboclos, os indígenas destribalizados e os negros libertos que moravam nas ilhas e regiões próximas a Belém, além de alguns fazendeiros e comerciantes inconformados com a política do presidente da província. O termo “Cabano” é uma referência às habitações [1] daqueles que formavam os maiores contingentes que integraram o movimento.

(Ilustração D'Arcy Albuquerque)

Com raízes fincadas nos primeiros anos da década de trinta, do século XIX, a Cabanagem alcançou seu apogeu no ano de 1935 quando o presidente da província, Bernardo Lobo de Souza, foi deposto e os cabanos ocuparam Belém. Três presidentes cabanos se sucederam no poder. O primeiro foi o fazendeiro e comerciante Félix Malcher. Acusado de traição e de jurar fidelidade ao Imperador, Malcher é deposto pelo chefe militar dos cabanos, Francisco Vinagre, que assumiu o poder. Pouco tempo depois, Vinagre abandonou o posto ante aos ataques das forças do governo central, apoiadas pelo mercenário inglês John Taylor.

Após uma retirada estratégica, os cabanos procuraram reunir forças novamente, surgiram grupos de resistência em algumas regiões próximas a Belém, entre elas a ilha do Mosqueiro que era reduto cabano. Da ilha, era possível ver o movimento das embarcações legalistas [2]. Os revoltosos não se descuidavam de enviar emissários conclamando o povo à retomada do poder. O capitão-tenente e comandante da fragata Imperatriz chega a alertar para o número crescente de canoas trazendo pessoas para as praias do Mosqueiro e para a “ponta do mel” (Icoaraci).

Em dezembro de 1835 os cabanos retomam o poder e Eduardo Angelin assume a presidência. Nessa ocasião, os representantes do governo central, liderados pelo marechal Manuel Jorge Rodrigues, retiram-se às pressas para a baía de Santo Antônio e se refugiam na ilha de Tatuoca. Alta, sêca, bem arejada e localizada entre a baía de Santo Antônio e a baía do Marajó, a ilha de Tatuoca passou a ser a sede do “governo legal” e núcleo da resistência legalista. Ao descrever a situação geográfica desta ilha, o historiador Domingos Antônio Raiol, o barão do Guajará faz a seguinte referência:

“... meia légua apenas decorre desta ilha a do Mosqueiro, onde se distingue a povoação deste mesmo nome com seus sítios e casas de campo, à beira-mar ou nas ribanceiras da costa , por entre palmares e arvoredos que bordam a enseada da baía de Santo Antônio, com todo o verdor luxuriante da vegetação equatorial. Por essas águas passam e repassam continuamente os vapores e navios de todas as nacionalidades, os barcos e canoas do interior da província, ou quando demandam ou quando deixam o porto da capital; e navegando em direções opostas, cortam a monotonia.”


No litoral da ilha do Mosqueiro, os cabanos mantinham dois pontos artilhados; o da Vila, instalado nas barrancas da praia do Bispo e o do Chapéu Virado, com artilharia montada nos penedos que ali existiam. Era desses pontos que tentavam alvejar os navios que conduziam tropa de infantaria e artilharia, mantimentos, armas, munições e fardamento para o marechal Manuel Jorge Rodrigues na ilha de Tatuoca e para as tropas de Pernambuco que haviam aportado na ilha de Cotijuba. Foram atacados pelos canhões de Mosqueiro o brigue “Pirajá”, o patcho “Constança”, três cargueiros e uma charrua imperial “Carioca”.

Reanimado com os reforços que acabavam de chegar, o marechal tratou de tomar providências que lhes pareciam urgentes para debelar o inimigo, perseguindo os pontos mais próximos, onde o mesmo havia se fortificado. Os pontos artilhados de Mosqueiro estavam entre os mais inconvenientes. Do lado cabano, reunião que contou com representantes de vários grupos, a preocupação com um ataque a Mosqueiro era evidente o que levou os seus membros a reforçar a vigilância e abastecer de pólvora e munição aqueles pontos.

Não demorou muito para o marechal mandar atacar o ponto da Vila, em Mosqueiro. No dia 20 de janeiro de 1836 enviou uma expedição composta por dois patachós, uma dezena de batelões e igarités para desembarque e mais de cem homens que despejaram uma saraivada de ferro e fogo sobre as defesas cabanas. Impossibilitados de resistir ao ataque das forças imperiais, os cabanos retiraram-se se entranhando nas matas e indo para o ponto do Chapéu Virado, reforçando o contingente que já existia neste local.

No dia seguinte, o marechal mandou ataca-los pelo 2º batalhão de caçadores comandado pelo major Manuel Muniz Tavares, 36 voluntários civis, estes, todos naturais da Vigia, sob a proteção da esquadrilha naval comandada pelo capitão-de-fragata Ricardo Haydem e composta pelos navios de guerra, Independência e Brasília, além de lanchões artilhados e canoas de pequeno calado.

(Ilustração D'Arcy Albuquerque)

Nesta ocasião, os cabanos que já esperavam o ataque, eram comandados por Auto Lorenço que nos combates assumia também o papel de chefe dos artilheiros. Em boa posição e entrincheirados, responderam ao ataque de forma vigorosa frustrando a primeira tentativa de desembarque da soldadesca imperial. Atingidos pela artilharia, destroços de várias embarcações são atirados na praia pelas ondas. Os imperiais insistiam e os cabanos rebatiam prolongando a batalha por cerca de cinco horas, até que a munição dos rebeldes acabou. Neste momento, foi dada a ordem para a retirada, utilizando, mais uma vez, o abrigo das matas. Ficaram no local da luta um morto, quatro feridos e Francisco Xavier Paio que, pela idade, não mais aguentaria a correria pelas matas. Raiol assim descreve este episódio:

  “... o desembarque que já era esperado no dia 21 de janeiro de 1836, foi seriamente disputado; serviu porém de muito a esquadrilha que o protegeu com renhido fogo de metralha sob o comando da capitão-de-fragata Ricardo Hayden. A resistência cabana tenaz cedeu por fim ao valor da perícia da força militar. Depois de algumas horas de combate, os rebeldes abandonaram as trincheiras deixando alguns prisioneiros, peças de ferro, armamento e munições.”


Disposto a debelar o foco cabano na ilha de Mosqueiro, o marechal Manuel Rodrigues ordenou, no dia seguinte, a formação de nova expedição pelos furos das baías do Sol e de Santo Antônio com o objetivo de capturar e matar os cabanos que haviam se refugiado naquela região. Alguns estavam dispersos enquanto que outros, reunidos em pequenos grupos ainda esboçaram reação. Enquanto escapavam pelas matas e rios que serpenteiam o interior da ilha, os cabanos foram largando alguns objetos que carregavam em seu espólio; moradores da comunidade do Espírito Santo, nas margens do rio Pratiquara, alegam que o nome da comunidade advém do fato de uma coroa do divino, cravejada de pedras preciosas ter sido jogada em um poço da localidade.

Dias após os combates em Mosqueiro, o marechal Manuel Rodrigues envia um relatório ao ministro da guerra, datado de 6 de fevereiro de 1836 contendo o seguinte trecho:

“...no dia 21 de janeiro mandei atacar o ponto do Chapéu Virado sendo encarregado deste ataque o 2º batalhão de caçadores de Pernambuco, comandado pelo major Manuel Muniz Tavares, e 36 cidadãos da Vigia e Pará, protegidos da barca de guerra Independência, paquête Brasília, igarités e botes de desembarque. O resultado foi tomarem os rebeldes 5 igarités, e destruírem-lhes outras cinco grandes que ficaram encalhadas por causa da maré, encravarem uma peça de ferro de calibre 12, tomarem outra de calibre 3 também de ferro e já muito velha, fazerem cinco prisioneiros, dos quais um é o capitão da extinta legião do Marajó, Francisco Xavier Paio, que era o diretor e secretário do comandante do ponto, antigo sóciodo cônego campos, e um tal Filipi Joaquim, que, fazendo-se da legalidade tinha estado em Cametá espiando e em outros  pontos, e se retirava com as munições que podia haver.

Soubemos depois que tiveram muitos feridos, porque no combate só um morto se viu, o qual não puderam recolher tão rapidamente. Os caçadores se portaram valorosamente, entrando no mato onde lhe fizeram os feridos. A marinhagem desembarcou para a tomada das canoas e também sofreu fogo. Tivemos 3 soldados gravemente feridos dos quais morreu 1; 5 soldados levemente feridos e um soldado contusos.”


Meira Filho ao escrever sobre o episódio faz questão de emitir o seguinte comentário:

“Imaginemos, em plena praia do Chapéu Virado, esta linda região balneária que hoje desfrutamos, há um século e meio sendo invadida por forças militares armadas, para expulsar, à base de metralha, os cabanos entrincheirados, defendendo a sua liberdade e própria libertação da Província. Ainda por ali há sangue bravo alimentando a terra e lhe dando o viço que enobrece as grandes causas.

Mosqueiro, pois, participou do sonho daqueles bravos cabanos, em seus anceios de levar a felicidade a seus lares e seus filhos.”


(Foto: arquivo Eduardo Brandão)

Apesar da campanha que procurou classificar os rebeldes como violentos e sanguinários, responsáveis pelo estado de abandono que se encontrava a Província e ter sido considerado oficialmente extinto em 1940 quando Gonçalves Jorge de Magalhães, o último líder cabano, se rendeu, o movimento permaneceu latente na memória do povo do Pará. Nas areias da praia do Chapéu Virado, da praia do Areão e nas matas, furos e rios do Mosqueiro ficaram os rastros, os sentimentos e o espírito cabano.

 (Foto: D'Arcy Albuquerque)

(Foto: D'Arcy Albuquerque)




[1] As cabanas eram casas de taipa cobertas de palha, talvez uma mistura entre as ocas indígenas e as casas dos portugueses, resultado do grande caldeirão de influências culturais que surgiu na região. As cabanas predominavam nas vilas e freguesias mais modestas. 
[2] Legalistas era o termo utilizado para definir as tropas leais ao governo central.

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